Achei esta foto quando revirava aquela gaveta esquecida do armário do quarto de hóspedes. É, a minha casa tem um quarto de hóspedes. Se você pudesse ler esta carta, iria gargalhar alto e dizer que eu me transformei numa daquelas “monstrinhas pequeno burguesas do Leblon”. E eu iria rir mais alto e te responderia, petulante como sempre te foi mais aprazível: você quem me transformou nisso.
O fato é que eu achava que pessoas da minha idade não eram mais surpreendidas por qualquer sombra da angústia. Achei que a velhice fosse me trazer o rastro da paz, retalhos de serenidade. Mas, neste dia em que eu reencontrei o meu passado, fui assaltada por alguma coisa que ainda persiste em mim e que eu desconhecia: a vontade sem nome, o desespero que acossa e nos manda ir, sem nos apontar para onde. Resolvi começar uma faxina que eu já sabia interminável.
A possibilidade de tocar a morte com a pontinha do dedo me arrepia a nuca toda as vezes que abro os olhos pela manhã. E eu não sei se fico aliviada por me restar vida ou pela morte estar um dia mais perto. Aprender a conviver com a tortura diária que é fazer as pequenas coisas cotidianas é um exercício que exige persistência, coragem e paciência. Uma dor austera acaricia todos os limites do meu corpo. E ele, flácido e pendurado, já não mais responde ao desejo. O tempo dá outra perspectiva sobre nós mesmos: a vida torna-se opaca.
Sempre olhei, soberba, aquele amontoado de velhos, todas as pelancas pendendo sobre mesas de dominó nas praças. Tinha certeza que, por saberem-se no final das suas horas, só lhes restava mesmo esperar. Essa coisa que pulsa não incomodaria mais e a existência passaria a ser regida pelos pares de pedrinhas pretas. Seria o caso apenas de permitir que a morte os alcançasse. Estava enganada. Naquela manhã de quarta-feira não fui capaz de desviar da vida, assim como os velhos que jogam dominó às oito da manhã na Antero de Quental também não são.
A velhice não traz apenas coisas dignas de dó. A perda da memória, por exemplo, é uma dádiva. É claro que quando ela chegou, eu resmunguei, briguei, fiquei mais amarga que o habitual. Depois percebi que era uma luta perdida e que me restava, então, extrair dela alguma coisa que me fizesse sorrir. Por exemplo, poder se surpreender com cheiros já conhecidos, com texturas que já fizeram parte da minha intimidade, com sons, acordes. Eu não fazia a mais vaga idéia de como era maravilhoso poder me tropeçar em palavras já conhecidas e me apaixonar por elas como na primeira vez que as encontrei. Imagine experimentar a fascinação pelas coisas já amadas! Eu não lembrava, por exemplo, como era divertido lavar o box do banheiro. Sabia que no dia seguinte não me levantaria da cama, mas eu já me fiz de idiota tantas vezes por motivos tão menos nobres... Não declinaria diante deste. Coloquei na vitrola um LP esquecido da Alcione cujo nome eu achei combinar com a situação: chamava-se Resistência.
Lavei cada ladrilho, rejunte e frestas com a escova de dente do falecido Arlindo, que ainda estava no armário do banheiro. Fiz questão de me demorar ali só para sentir a água gelada escoando por todas as ranhuras que as unhas do tempo lapidaram na minha pele. Terminado o banheiro, eu já estava exausta, mas ainda eram dez e meia da manhã. O dia ainda se estendia longo à minha frente e eu não sabia mais o que fazer, embora alguma coisa tivesse que ser feita.
O quarto de hóspedes sempre me foi o menos camarada. Poucas vezes na vida entrei ali por causa do efeito que este papel de parede estampado com rosas cor-de-rosa me causava. Era um misto de ânsia com irritação, não sei se tem um nome preciso para isso. Ele, o quarto, fazia parte do rol de exigências do Arlindo, que achava elegante ter um aposento para visitas, mesmo que nunca recebêssemos em casa. O fato é que, além de não nos servir de muita coisa, ele funcionava como o arauto da nossa existência classe média: foi nele que depositei boa parte das minhas memórias. Parte das minhas boas memórias, melhor dizendo. O Arlindo não podia saber do meu passado e foi no fundo daquele armário rosa bebê que ele, o passado, ficou.
Menti durante entediantes cinqüenta anos de casamento.
E, confesso, fui uma mentirinha bem convincente de vestidos floridos na altura do joelho, cabelos castanhos domados num coque, escapulário no peito. Eu fui uma das senhoras mais decentes do Leblon.
Foi você quem me ajudou a transformar nisso.
Abri o armário do quarto de hospedes sem saber que ele continha a emoção guardada há mais de cinqüenta anos. E ela veio toda de uma vez, sem o menor garbo. Senti o calor do teu hálito, o cheiro do teu cigarro barato. Foi você quem bateu esta foto. Eu tinha me descuidado e acabei dormindo contigo. Acordei já bem pra lá das oito da manhã. Tentei não te acordar, eu não queria falar com você, ter que te encarar. Tudo ficava mais simples quando nós não tínhamos que nos encontrar no dia seguinte: você permanecia intocável, meu James Dean particular. Saí da cama de leve, mas nervosa. Cheguei na sala atrapalhada, procurando as roupas e precisei fumar. Parece que você acordou com o cheiro e me seguiu através dele. Eu me virei e você sorria. Ali, eu tive certeza que tinha acabado: você não já não tinha mais o charme daqueles que não amam.
Até então, eu achava que desamor doer era meramente uma licença poética idiota. Como eu era arrogante. Para não chorar na sua frente, inventei qualquer coisa estúpida para sumir dali rápido. Disse que ia à padaria comprar pães pro nosso café da manhã romântico. Você acreditou e, orgulhoso, me jogou as chaves do seu carro. Eu saí da sua casa ainda meio tonta, com o coração rasgado e sabendo que não teria mais qualquer saída possível: você já não era mais aquele por quem eu tinha me encantado. Só me restava comprar os pães e interpretar mais meia hora a jovem-rebelde-feliz. Entrei no carro, virei a chave. Ouvi você me gritar da porta. Te olhei e você tirou esta foto. Nela, vejo todo o terror, toda tristeza e o maior amor do mundo que tinha acabado de ser perdido. Ela é a materialização do extermínio das minhas fantasias românticas.
Fui à padaria, comprei cinco pães franceses e um doce. Voltei para sua casa. Comemos, conversamos, você insistiu para que eu ficasse tantas vezes e eu, só, precisava chorar. Você não cabia mais.
Você ainda foi ao Instituto de Educação algumas vezes procurando por mim, me esquivei de te encontrar em todas elas. Finalmente você desistiu e me mandou esta foto pelo correio. Fiz questão de esconde-la de mim mesma, não queria esbarrar na saudade de uma época em que tudo parecia mais bonito. Fui covarde em não jogá-la fora, admito.
Logo em seguida, conheci o Arlindo.
E como eu já não acreditava mais no amor, me casei com ele.
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Texto publicado dia 13.11.08.
Tenho um orgulho giga deste texto, aí to aproveitando a maré de visitas pra... pra... pra parecer que eu escrevo bem! hahaha
Mó correria, ainda sem tempo de escrever. Esta semana vai ter coisa nova, prometo. Notem: era pra hoje e já estiquei o prazo pro resto da semana. Briguem com o Tyzsler, psicanalista francês que tá dando o ar da graça aqui no Rio e nos presenteando com zilhões de seminários de graça. Aeeeeee!
9 ficando fora de si:
acho que esse foi o único blog novo que me chamou atenção da lista de blogueiras gatas, mas fiquei com preguissa de ler esse textão. Esperarei o inédito.
e eu até brigaria com o tal francês ai, mas não brigo com quem nem ao menos sei dizer o nome...
eu nunca duvidei que vc faria um texto tão bacana... muito boa história e feliz idéia de usar a foto!!
beijo Carol!! boas palestras!! :)
sabe...eu curti o texto. Muito. Meus medos são iguais...
^^
Menina, vc escreve bem sim, muito bom seu texto!
Bjos,
Paulinha
Texto bonito. Agora, em relação aos velhinhos, seus jogos e pelancas, segurando as peças do dominó eles evitam que a última delas seja derrubada.
Escreve sim, Carol.
eu gosto.
ahaha.... Primor de texto!!!!!
"eu achava que desamor doer era meramente uma licença poética idiota..."
Garota, vc não pode abandonar esse blog.... ahahahah
beijinhos,
Cássia
http://twitter.com/Popysp
esse texto é um clássico da blogosfera brasileira! hahaha sério, adoro!
Lindo, Carol! O final é tocante.
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